sábado, 3 de outubro de 2020

DIZEM SER A CONTA QUE DEUS FEZ.

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NESTA resposta/comentário que fiz  ao último comentador do postal que podem ver clicando na palavra escrita em maiúsculas, meu amigo de há largos anos, que muito prezo e estimo, referi que quando publicasse o poema do Poeta/Escritor, Paulo Mendes Campos, pouco conhecido entre nós, este lhe seria dedicado. Hoje, cumpro a palavra dada. 

Este postal, é pois dedicado ao Rogério C.V. Pereira.

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Três Coisas


Três Coisas 

Não consigo entender

O tempo

A morte

Teu olhar


O tempo é muito comprido

A morte não tem sentido

Teu olhar me põe perdido


Não consigo medir

O tempo

A morte

Teu olhar


O tempo, quando é que cessa?

A morte, quando começa?

Teu olhar, quando se expressa?


Muito medo tenho

Do tempo

Da morte

De teu olhar


O tempo levanta o muro.


A morte será o escuro?


Em teu olhar me procuro

*


Fonte
da fotografia do Poeta

Paulo Mendes Campos
28- 02 -1922
01 - 07 - 1991 

Escritor, jornalista e poeta brasileiro, conhecido, sobretudo, pelas suas Crónicas. É, pois, com uma das suas Crónicas que termino.


"O Amor Acaba"

"O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insónia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto, o amor acaba."

[Assim, de um só fôlego, bem ao jeito do 'nosso' Nobel. ]








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22 comentários:

  1. Muito bom o texto da crónica. Boa Tarde e obrigado pela divulgação.

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    1. Eu sei que os textos longos na blogosfera não são a melhor opção. Requerem tempo para ler e assimilar o seu conteúdo para que se possa formular uma opinião sobre. Porém, também sei que há quem os aprecie, não só por ser autor de outros escritos, mas porque dá valor a um bom tema.
      Tinha uma secreta esperança que o Sr.das Nuvens fosse um desses leitores. Vejo que não me enganei e agradeço-lhe por isso.

      Boa Noite e obrigada.

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  2. Decerto que o amigo Rogério ficará muito feliz com esta dedicação.
    .
    Bom fim-de-semana
    Cumprimentos

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    1. Sabe, Ricardo? Quando 'descobri' o quinto poeta daquele quinteto, estive a ver uma boa parte da sua obra, disponível na Net, e escolhi logo o poema que gostei. Coloquei-o no meu blogue e deixei ficar em rascunho. Se fosse hoje, não seria este que publicaria, em virtude da postagem que o Rogério publicou. Não vão faltar vozes, ou pensamentos, a alvitrar propósitos da minha parte, o que não é de todo verdade. Coincidência, simplesmente. Mas, a caravana passa sempre...:)

      Obrigada e um bom fim-de-semana.

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  3. Será imperdoável, mas nem sequer o nome me diz nada. Uma bela prosa. Saramago mas também Mia Couto, digo eu.
    bjis.

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    1. Que diacho!!! Mas, então, já não tinha sido isso, visto e dito, por todo/as quantos apreciaram a fotografia em que o José referiu o quarteto + um que não conhecia?
      Não conhecia, mas ficou a conhecer. Estão, para que serve tudo o que vos dei a conhecer?
      O que é imperdoável é esse seu esquecimento que, traduzo, por indiferença.
      Bem, passado o raspanete e antes de me pronunciar sobre isso de englobar Mia Couto, no rol dos escritores que levam a escrita toda a eito, sem pontos finais nem parágrafos, pequei no livro dele aqui mais à mão e li:

      "Permaneço calado. Perto, um noitibó canta.
      Não quero responder sobre o tempo que demorou entre uma e outra visita. Naquele sossego, a única coisa que me apetece é fazer demorar o tempo.


      Pronto, Mia Couto está fora dos escritores que escrevem, e nos fazem morrer com falta de ar.

      Beijinhos.

      (Já reparou que, com o que escrevo em comentários, me dava para publicar uns quantos postais? E ilustrados...!! )

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  4. O teu (nosso) amigo vai ficar emocionado...
    Muito bem, Janita.
    : )

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    1. Pois...e isso está a ser uma preocupação para mim, acreditas?
      Com todas as emoções porque tem passado nos últimos tempos, receio que o poema lhe traga alguma tristeza. Como disse atrás, quando lhe fiz a 'promessa' já o tinha escolhido e colocado em rascunho. Como não costumo avisar os ´homenageados' pode ser que ele nem se aperceba desta publicação. Pelo menos agora.

      Obrigada, Catarina. :)

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    2. Gosto dobreforco de cultura que se tem sempre que se vem a este blog.
      😊
      Mais uma vez aconteceu comigo agora
      Gostei 😊

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    3. 😊 Muito Obrigada.
      A parte que me toca, é tão miseravelmente pequena... 😊

      Mas, tudo o que faço é para enaltecer os outros e não a mim mesma, como penso já ter percebido.

      Boa noite.

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    4. Com certeza que sim.
      Por isso é gratificante aqui vir, é apreciar tudo o que se lê
      😊

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    5. Só posso agradecer-lhe.
      Sinceramente, também a mim me é muito gratificante receber as suas visitas.
      Obrigada. :-)

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  5. Toma, raspanete bem passado. Continuo a levar no toutiço.
    Uma boa noute.

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  6. Muito lindo este post, gostei muito da poesia.

    Arthur Claro
    http://www.arthur-claro.blogspot.com

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    1. Muito obrigada pela sua visita, Arthur Claro.
      Seja bem-vindo.

      Este poeta foi uma descoberta recente. Imagine...com um palmarés brilhante, este seu conterrâneo, era completamente desconhecido neste lado do Atlântico. Imperdoável!
      Culpa das Editoras?

      Tenha um bom Domingo.

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  7. Bom dia
    O Amor sempre foi e jamais deixará de ser um dos maiores temas para muita inspiração.

    JR

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    1. Bom Dia, JR!

      Sem sombra de dúvida...como remata o Poeta/cronista, no final:

      ...o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto...

      Que ninguém se convença ser o poder e a riqueza, a mola que faz girar o mundo. A continuação da Humanidade, dentro dos trilhos da sabedoria, cabe inteiramente ao poder do Amor. :)

      Bom Domingo.

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  8. Gostei muito de conhecer este autor que, de todo, desconhecia.

    Beijinho, Janita

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    1. O que não deixa de ser muito estranho. No Brasil ele era/é, muito conhecido.

      Obrigada, Maria João.

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  9. Gostei do poema, mas especialmente do texto (crónica?)
    Pessoalmente penso que o Rogério merece a dedicatória. Gosto muito dos seus poemas e tenho pena que os mostre tão pouco.
    Abraço saúde e bom feriado

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    1. Creio saber que este escritor se notabilizou, essencialmente pelas suas excelentes Crónicas, tendo alguns livros publicados, Elvira.
      O que me surpreende realmente, é o desconhecimento total de Paulo M. Campos no nosso País.
      E, no resto, concordo com tudo o que diz.

      Um abraço.

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