sexta-feira, 26 de março de 2021

O VELHO QUE SABIA DEMAIS. 2ª Parte

 


Rapariga – Também eu, durante todos estes anos não te esqueci. Por isso venho agora buscar-te para te levar comigo e sermos felizes para sempre.

Sábio – Não, Morte. Eu sei tudo e sei que, sob essa máscara, se esconde o rosto da Morte. Vens buscar-me porque queres levar-me contigo para o Reino das Sombras. E eu irei contigo de bom grado porque já aprendi tudo o que há para aprender e a vida, para mim, já não tem interesse algum.

Rapariga (Tristemente) – Vejo que te esqueceste de mim. E que estás tão velho que confundes o Amor e a Morte.

– A Morte ficou muito contrariada por ter sido de novo descoberta e, por isso, não poder levar consigo o Sábio. Mas, como tem muito tempo, continuou durante muitos e muitos anos a tentar apanhá-lo desprevenido. Ele, porém, reconhecia-a sempre, apesar de a Morte ser muito imaginosa e de usar muitos disfarces.

 Ora, ao fim de tantos anos de vida, a verdade é que o Sábio estava cansado de viver. Ainda por cima uma vida tão triste e tão aborrecida, sem nada dela que não soubesse, fechado na Biblioteca rodeado de livros que já lera mil vezes. Como sabia tudo, sabia que só poderia morrer se não reconhecesse a Morte quando ela chegasse, mas sabia também que a reconheceria de todas as vezes que ela lhe batesse à porta. 

– Ai de mim! Estou tão velho e tão cansado! Li todos os livros do Mundo, aprendi todas as coisas que é possível aprender, conheço todos os mistérios da vida e da morte. Mas tudo o que sei é inútil e silencioso, sem amigos e sem ninguém com quem conversar, porque as pessoas têm medo de mim e não se aproximam, temendo que eu conheça os seus segredos e não podem suportar isso. Até morrer me está vedado, porque nem mesmo a Morte, com os seus mil disfarces, me pode surpreender!

Ai de mim, ao fim de tantos anos e de tantos livros, que posso ainda desejar se não a Morte? Oh, quanto gostaria de a conhecer por fim! Mas vivo enclausurado, sou prisioneiro do que sei e do que aprendi. O meu corpo está seco e gasto como um velho pergaminho, o meu coração não se alvoroça nem bate mais depressa com coisas inesperadas e novas, porque para mim nada é novo e tudo se repete. Cada um dos meus dias é igual ao outro dia, cada hora igual à hora anterior. Como eu gostaria de sair da minha Biblioteca, mas, para isso, teria que sair de mim, porque eu próprio sou a Biblioteca. Como ela, não estou vivo nem estou morto, estou fechado dentro de mim como num labirinto ou como se fosse um livro antigo escrito numa língua desconhecida, que ninguém, nem mesmo a Morte, é capaz de ler.

 – Então o Sábio, como a Morte não podia alcançá-lo, e porque estava cansado de viver e de saber tudo, decidiu ir ele à procura do Reino das Sombras.


 Durante meses e meses fez cálculos matemáticos, estudou mapas, traçou rotas. Até que acabou por descobrir o lugar exacto onde era o tal Reino das Sombras. E, um dia, depois de ter posto as suas melhores vestes, para lá partiu.  Viajou durante muito, muito tempo. Cruzou rios e florestas, subiu montanhas, atravessou desertos. E, quando passava nas aldeias, as pessoas curvavam-se respeitosamente diante dele e afastavam-se logo, murmurando:

“É o Sábio. Diz-se que conhece o passado, o presente e o futuro…"

 Até que um dia, numa vereda, se lhe dirigiu um velho coberto de andrajos. 

– Tenho fome. Dá-me, por Deus, alguma coisa de comer.

O Sábio estremeceu. Nos seus livros, fechado na sua Biblioteca, tinha muitas vezes lido coisas sobre a fome. Mas nunca tinha tido fome. E agora, de repente, tudo o que aprendera nos livros parecia-lhe pouco. Meteu a mão na bolsa procurando algo que dar ao Mendigo, mas na bolsa trazia apenas livros e tratados.

– Desculpa, bom homem, mas comigo só trago livros. 

– Aceito os teus livros. Talvez alguém me dê qualquer coisa por eles e eu possa comprar que comer.

– O Sábio tirou da sua bolsa todos os livros que levava e entregou-os ao Mendigo. Sentou-se numa pedra à beira da estrada. Sentia-se fraco, as pernas pareciam não ser capazes de suportar o peso do seu corpo, e o Sábio lembrou-se então de que não comia há muitos dias.

O Mendigo aproximou-se dele e disse:

– Vejo que também tens fome. Vou à aldeia vender os teus livros e voltarei com alguma coisa para comermos ambos.

- O Mendigo partiu em direcção à aldeia e o Sábio ficou a pensar:

 – É então isto a fome… Que coisa estranha, não é nada parecido com o que vem nos livros…

– O Sábio sentiu uma estranha alegria apossar-se dele e, quando o Mendigo regressou com alguns bocados de pão, comeram ambos sofregamente. No fim, o Sábio levantou-se, abraçou o Mendigo e disse:

 – Obrigado, bom homem. Ensinaste-me hoje algo que não se aprende em livro nenhum.

– O Sábio prosseguiu a sua longa viagem em direcção ao Reino das Sombras, feliz por saber que, afinal, havia alguma coisa que não sabia.

Embora, na verdade, naquela altura tivesse ficado também a sabê-la…

 Mais adiante encontrou, deitado sob uma árvore, um homem que gritava cheio de dores.

O Sábio aproximou-se e perguntou:

– Porque gritas? 

 – Porque estou doente. Não vês como sofro?

– O Sábio pegou-lhe na mão. A mão estava húmida e febril e o Sábio sentiu-se subitamente inquieto. Nunca antes tinha tocado a mão de outro homem. A mão do homem apertou a mão do Sábio com toda a força, e o Sábio sentiu uma impressão estranha no coração, como se o seu coração tivesse ficado de repente mais pequeno. 

E então recordou que lera há muito tempo, num velho livro, algo sobre um sentimento confuso e angustiante, chamado compaixão, e percebeu que o seu coração estava cheio de compaixão. Apertou também ele a mão do homem e disse-lhe:

– Tem coragem. Conheço todos os segredos da Medicina e tentarei minorar o teu sofrimento.

– O Sábio colheu umas ervas e fez com elas um chá que deu a beber ao doente e este sentiu-se logo melhor. O doente beijou então as mãos do Sábio, dizendo:

– Obrigado, obrigado. Agora já não tenho dores. Que posso fazer para te agradecer?

– O Sábio sentiu uma felicidade que nunca tinha sentido. Ajudou o Doente a levantar-se e respondeu:

– Não tens que fazer nada para me agradecer. Eu é que te estou muito agradecido porque me fizeste aprender uma coisa que nenhum livro antes me ensinara.

– O Sábio despediu-se do doente, abraçando-o, e partiu de novo. Sentia-se misteriosamente leve e tranquilo como se, em vez de andar, flutuasse. O sangue corria-lhe nas veias com força e o dia parecia-lhe mais transparente e luminoso, os sons da floresta mais nítidos, o céu mais alto e mais limpo. 

Encheu os pulmões de ar fresco e pensou:


Continua....


"História do Sábio Fechado na sua Biblioteca" 

de Manuel António Pina

Ilustração de Guilherme Castro 





25 comentários:

  1. Que imaginação prodigiosa!
    Beijo, bfds

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    1. Como de resto, prodigiosos são todos os que manejam a pena, usando a imaginação com criatividade e mestria, Pedro.
      Temos outros, e muito bons, também.

      Beijinhos, bom FDS.

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  2. Um belíssimo conto que gostei muito de ler. E que estou a gostar de reler.
    Abraço, saúde e bom fim de semana

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    1. Quando uma leitura nos agrada, é sempre um prazer relê-la, Elvira.
      Obrigada por ter vindo reler.

      Um abraço, bom fim de semana

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  3. Bom dia, Janita!
    Manuel António Pina era um sábio que vivia, para além de viver também na sua biblioteca.
    O sábio da história descobriu que, afinal, os problemas humanos não são 'apenas' os que estão descritos nos livros, mas à sua/nossa volta.
    Fico à espera da continuação do belo conto. Obrigada.
    Beijinhos

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    1. Bo noite, Mª Dolores.
      O sábio autor deste conto para além de saber viver, também dedicou uma boa parte do seu tempo a idolatrar os sábios felinos com que repartia a sua casa.
      Os problemas que se desenrolam à nossa volta passam muitas vezes desapercebidos até aos olhos dos mais sábios.
      Não vai precisar de esperar muito. Ao bater das doze badaladas sairá a terceira e última parte. :)

      Beijinhos e obrigada.

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  4. Bom dia
    O que será que o sábio ainda não sabe ?
    Vou esperar para saber !

    JR

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    1. Boa noite, JR.

      O que sabe o sábio e aquilo que o sábio ficou a saber e não sabia, saberá amanhã o JR. Todos temos direito a um pouco mais de sabedoria, não é verdade?

      :)

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  5. Também vou esperar....
    Beijinhos

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  6. Agora sim, começo a acreditar na sabedoria do "velho que sabia tudo".

    "Mais vale o corrido do que o lido".

    Acho que ele não tinha ideia do que desconhecia.

    Beijinho Janita e votos de bom fim-de-semana!

    Sandra Martins

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    1. Ora, Sandra, todos os que sabem tudo ou julgam saber, sabem demais e mais do que o seu saber.

      E se for o corridinho do Algarve vale ainda muito mais do que o lido, a correr.

      Beijinhos, Sandra, bom fim de semana.

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  7. Estou fascinada com esta história e já dá para perceber que certas coisas não vêm nos livros...amizade, compaixão e partilha.

    Beijinhos querida Janita

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    1. Nem mais, querida Manu! Agora é que acertaste na mouche.
      Amanhã, no domingo ou noutro dia qualquer, podes ler o final aqui, no canto do costume.

      Beijinhos, amiga Manu.

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  8. Este escrito tem muito mais valor do que se possa imaginar.
    Fim do segundo capítulo ... 'bora lá aguardar os capítulos que se seguem.
    Beijinho, Janita.

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    1. O que se segue não vão ser capítulos, amigo António. Vai ser apenas, e só, mais um. Caso contrário, se a história se alongasse, ainda perdias o interesse. :)
      Amanhã, vem acabar a leitura para saber como fica o velho Sábio:
      Se casa com a rapariga, fica a calcorrear o mundo com o amigo mendigo ou, se não for nada disto, amanhã te digo.

      Beijinhos, aí para Almada. :)

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  9. Não sei faz parte do 'menu' de leitura no ensino secundário, mas devia ser obrigatório ler o Manual António Pina. Segui, sempre com enorme prazer, as suas crónicas no JN.
    bjis.

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    1. Também desconheço se o nosso sábio Manuel António Pina é leitura obrigatória no Ensino Secundário, ou não, mas que devia ser obrigatório no Ensino Superior, lá isso devia.

      Também cheguei a ler algumas dessas crónicas.
      Beijinhos, bom fim de semana

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  10. Este comentário foi removido pelo autor.

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    1. Cada vez percebo menos disto. Eu só quis publicar mas pelos visto o blogger tem outras intençõns e vez sim, vez não, "lixa-me" os comentários, raios o partam...

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    2. Raios o partam mesmo!! Até a mim, sua devota desde tempos imemoriais, esse tal de Blogger passa rasteiras, quanto mais ao pessoal de outras plataformas...
      Mas a causa pela qual vens, merece que passes por esses dissabores. eheheheh

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  11. Ora bem, o comentário que pretendi fazer dizia +ou- isto:
    Só mesmo um sábio que saiba tudo (ou quase) trata a morte com displicência, desafiando-a com sucesso. Eu também sobre ela escrevo de quando em vez, mas é só teoria, sem quaisquer "experiência profissional" sobre o assunto. Por isso estou "mortinho" por saber o que o sábio fez e que rumo tomou a coisa. ô_ô
    Beijinhos e sorrisos, vivinhos, vivinhos, vivinhos!

    §-não conhecia este autor muito embora o texto não me seja completamente estranho.

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    1. Ora então vamos lá ver o que me trazes, ó Kok grande sábio de todas as artes já desvendadas e por desvendar...
      Pois, o rumo que a coisa tomou está tomado há já algum tempo e não vai mudar nada, nem uma vírgula. Vem cá amanhã e saberás o que o velho Sábio ficou a saber, Ok?
      Nunca, jamais, este escritor te poderia ser estranho, pois já aqui leste muitos poemas seus.

      Bem, deixemo-nos de brincadeiras que isto é sério.
      Cá te aguardo.
      Beijinhos, sorrisos e um abraço especial.

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  12. Obrigado pela continuação
    Le se de um trago
    😊

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    1. Ah, Miguel, mas amanhã há mais deste néctar. 😊
      Seja de um trago, ou de dois ou três, escorrega que é uma beleza...

      Obrigada lhe fico eu.
      Um abraço.

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