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"Pau de Arara"poema do poeta paraibanoPompílio Diniz.
Lá vem vindo os pau-de-arara
Num caminhão Fê-Nê-Mê
Desses, que, quando para,
Suspira pra gente vê!
Lá vem vindo os pau-de-arara,
E o só, bateno na cara,
Fazeno os póbe sofrê.
Fê-Nê-Mê é caminhão
Das Fábrica Nacioná
De Motô, qui dá insprusão
E custa munto a pegá.
Fê-Nê-Mê tem nome inzato,
É Fome no Norte é Mato,
Assim diz o perssoá.
Num caminhão Fê-Nê-Mê
Desses, que, quando para,
Suspira pra gente vê!
Lá vem vindo os pau-de-arara,
E o só, bateno na cara,
Fazeno os póbe sofrê.
Fê-Nê-Mê é caminhão
Das Fábrica Nacioná
De Motô, qui dá insprusão
E custa munto a pegá.
Fê-Nê-Mê tem nome inzato,
É Fome no Norte é Mato,
Assim diz o perssoá.
Vem todo mundo lá drento,
Uns de cóca, ôtos de pé,
Naquela farta de assento,
Se arrume lá quem pudé!
A gente tem impressão
Qui o peste do caminhão
Virô barca de Noé.
Suó, catinga, puêra,
Fadiga, fome, cansaço,
Dô de cabeça, tontêra,
Molêza e dô no ispinhaço!
Tudo isso o cabra sente,
No meio daquela gente,
Além dos ôto imbaraço.
É quando grita um de lá:
- Qui farta de inducação!
Tu num pudia isperá
Qui parasse o caminhão?
Apelando pra saúde,
Diz o ôto: - Fiz o qui pude,
Ma num hôve jeito não!
As istrada?... É uma disgraça,
Só tem buraco e disvio!
Quando passa o caminhão
Pu riba dos catabio,
Quem tá lá drento dá pinote,
Qui inté parece os caçote,
Na ribancêra do rio.
Isso, porém, num é nada
Pus cabôco do Sertão!
As istrada insburacada,
As farta de inducação,
Nada disso se cumpara
Cum o sofrê dos pau-de-arara,
Quando quebra o caminhão.
Entonce, grita o chofé:
- Munta atenção, perssoá!
In riba fica as mulé,
Os home tem qui apiá!
O caminhão trôxe ocêis,
Agora, chegô a vêiz
De nóis tomém li levá!
E vosmicê num imagina
O qui é um caminhão
Quebrado nas travessia
Das istrada do Sertão!
É cansaço, sêde, fome,
E o home qui num fô home
Num arrizéste, nhôr, não!
E assim chêga os pau-de-arara,
Impurrano um Fê-Nê-Mê!
O só, bateno na cara,
Fazeno os póbe sofrê!
Coitado dos pau-de-arara,
A sorte nunca lhe ampara,
Nem os Guvêrno lis vê!
Essa era a dura realidade dos retirantes nordestinos daquela época. Isso, quando eles vinham de pau-de-arara! Porque tinha muitos que vinham mesmo é de a-pé!
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Tudinho roubado ao Compadre Lemos lá na Poesia Popular Nordestina. E agora digo eu:
Hoje todo o mundo vive bem
Tudo tem o qui comé
(Êta vida boa!)
Naquele tempo sofrido
Um homi vivia consumido
Desejando inté nem nacé.
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Post que dedico aos meus queridos
amigos do outro lado do
Atlântico.
Escravidão.
ResponderEliminarPau-de-arara até arrepia só de olhar.
Beijinhos
Escravos da região árida em que viviam e do ostracismo a que o Governo os votava.
EliminarArrepiante tal pobreza, sim, Pedro.
Beijinhos
Eta, poesia nordestina bem disposta! Gostei de ler!
ResponderEliminarÊta, haver poetas que ainda escrevem sobre os mais desamparados da face da terra. Os que dão voz aos sem voz, sem terra, sem nada.
EliminarObrigada.
Bom dia amiga.
ResponderEliminarA alma da poesia popular é sem dúvida uma maravilha.
Parabéns ao autor e obrigado pela publicação.
JR
Bom dia, JR.
EliminarSim, é verdade. Na poesia popular está sempre latente a Alma do Povo. Seja qual for o País ou a região.
Agradecida por ter vindo, ter lido e ter apreciado o trabalho do Poeta.
Um poema muito emotivo de um tempo da escravidão a que muitos foram sujeitos.
ResponderEliminarComo adoro a poesia brasileira ofereço-te esta para aliviar a comoção e sobre a foto do topo deste teu espaço:
A Flor do Maracujá
Catulo da Paixão Cearense
.............................................
Encontrando-me com um sertanejo,
Perto de um pé de maracujá,
Eu lhe perguntei:
Diga-me caro sertanejo,
Porque razão nasce branca e roxa,
A flor do maracujá?
Ah, pois então eu lhi conto,
A estória que ouvi contá,
A razão pro que nasci branca i roxa,
A frô do maracujá.
Maracujá já foi branco,
Eu posso inté lhe ajurá,
Mais branco qui caridadi,
Mais brando do que o luá.
Quando a frô brotava nele,
Lá pros cunfim do sertão,
Maracujá parecia,
Um ninho de argodão.
Mais um dia, há muito tempo,
Num meis que inté num mi alembro,
Si foi maio, si foi junho,
Si foi janeiro ou dezembro.
Nosso sinhô Jesus Cristo,
Foi condenado a morrê,
Numa cruis crucificado,
Longe daqui como o quê,
Pregaro cristo a martelo,
E ao vê tamanha crueza,
A natureza inteirinha,
Pois-se a chorá di tristeza.
Chorava us campu,
As foia, as ribeira,
Sabiá tamém chorava,
Nos gaio a laranjera,
E havia junto da cruis,
Um pé de maracujá,
Carregadinho de frô,
Aos pé de nosso sinhô.
I o sangue de Jesus Cristo,
Sangui pisado de dô,
Nus pé du maracujá,
Tingia todas as frô,
Eis aqui seu moço,
A estória que eu vi contá,
A razão proque nasce branca i roxa,
A frô do maracujá
🤗😘
Beijocas e um bom dia
Oh...minha amiga, que belo poema me trazes!
EliminarEstou aqui desfeita em lágrimas qual Maria Madalena.
E não é pelo sofrer da natureza que toda se cobriu de tristeza, ao ver Cristo sofrendo na cruz.
É que tudo o que é belo e singelo me enternece me comove, me apaixona e me seduz.
Se te apanhasse agora aqui dava-te um abraço enorme e um beijo repenicado, em cada lado da tua cara...Que beleza, que maravilha de presente me dás!
Olha que tu...debaixo dessa carapaça de durona és um coração mole e terno. Grande Fatyly!
Beijinhos e abraços mil.
😘 🤗
Que legal ver o Nordeste aqui representado nessa linda poesia!
ResponderEliminarAdorei! beijos, tudo de bom,chica
Fico muito feliz por teres gostado, querida Chica.
EliminarBeijinhos
In felizmente que a escravatura acabou. Ou melhor: Será que acabou mesmo? Nos moldes que existiu sim acabou. Hoje em dia aqui e ali ainda aparecem laivos infelizes de escravidão feita por alguns miseráveis seres humanos sobre outros seres humanos e, até sobre animais. Poema sentido - qual grito de alerta pela injustiça - que muito gostei de ler
ResponderEliminar.
Cumprimentos poéticos.
.
O poder dos mais fortes sobre os mais fracos, quando exercido com prepotência, é sempre uma forma de escravatura.
EliminarBom dia e obrigada.
Gostei desta partilha com sabor brasileiro.
ResponderEliminarA escravatura era e continua a ser o pão nosso de cada dia.
Beijinhos Janita
O pior é que a crueldade parece ter tomado assento até entre as faixas etárias mais jovens, Manu. É só não fugirmos à realidade e prestarmos atenção aos noticiários.
EliminarA Idade da Pedra estará a voltar? :(
Beijinhos, amiga!
Gostei muito do poema.
ResponderEliminarOs retirantes que conheci literariamente vinham a pé e muito mais sofridos.
Abraço
Jorge Amado foi um dos escritores que nos trouxe essa vida dura e sofrida dos chamados 'retirantes'.
EliminarUm abraço, Leo!
Um poema interessante.
ResponderEliminarA exploração do homem pelo homem já teve maior sucesso, mas continua através de outros métodos.
Continuação de boa semana, amiga Janita.
Beijo.
Eu diria que a exploração dos mais fracos e desfavorecidos da sorte, pelos mais fortes, vai tomando outros contornos consoante as épocas, mas nunca deixou de existir. Enquanto não são descobertos e punidos, é debaixo dos panos, sem ninguém saber, - como cantava o Ney - que tudo vai sendo feito. Neste "feito", incluo todas as barbaridades...
EliminarBom fim de semana, Jaime.
Um abraço
Grande Pompílio Diniz! Bem que ele disse: “Cumpro com o meu dever de poesia popular brasileiro e nacionalista. Minha poesia é do povo.” Poeta, repentista e declamador, como reza alguma crónica sobre a sua vida e obra, ele imprime nos seus poemas a alma do povo. Desde a forma de falar ao desgaste do viver do dia-a-dia.
ResponderEliminarEste poema que aqui nos traz, querida Janita, é bem o retrato desse sofrer e, ao fim e ao cabo, de um certo conformismo. Lembra-me certos lugares no mundo, nomeadamente em África e na Índia, onde as pessoas vivem abaixo do limiar da pobreza e quando podem andar de transportes, é "tudo ao molho e fé em Deus".
Muito obrigada por nos trazer este poeta nordestino.
Beijinhos
Olinda
Vejo que a Olinda conhece ou foi conhecer melhor o poeta que cantava, declamando, a vida sofrida dos sertanejos que saíam das suas terras para procurar uma vida melhor.
EliminarAfinal, um processo de emigração ou migração, que nunca teve fim.
Eu é que lhe fico grata por ter vindo abrir este leque de conhecimentos acerca deste tema, querida Olinda.
Um beijinho.
Muito bom... Adorei :))
ResponderEliminarBeijo, e uma boa tarde!
Obrigada, amiga Cidália.
EliminarCreio que continuo em dívida consigo, pelo que peço desculpa.
Um beijinho
Minha amiga Janita,
ResponderEliminarO que não falta é literatura sobre a vida dos retirantes nordestinos. Boa literatura como esta deste cantador/compositor, verdadeiro jogral, paraibano, que você nos traz. Ou aquela peça lírica da semana passada cantada por Ari Toledo, que também se chamava Pau de Arara. Começa em 1928 com A bagaceira, de José Américo de Almeida, e desaguamos em Rachel de Queiroz, com o romance O Quinze; Graciliano Ramos, com Vidas Secas; José Lins do Rego com Menino de Engenho; e Jorge Amado, em outra vertente, mas pertencente à geração de 30 ou Romance de 1930. O drama dos retirantes continua sendo contado de um modo ou de outro. Há dois romances recentes, Torto Arado, de Itamar Vieira Junior; e Cora pela Couro, de Rubem Ivo, que trata vigorosamente das desigualdades sociais pelo nordeste brasileiro, que, passado tanto tempo, depois da geração de 30, o drama dos retirantes ainda é o mesmo.
Registre-se ainda que o Pau de Arara é também um meio de tortura física usado pelos senhores da ditadura militar. O Pau de Arara consiste em uma barra de ferro na qual o prisioneiro é pendurado e enrolado, de forma que a vara fique bloqueada entre a concha dos braços e a concha das pernas sem contar o que era feito depois de dependurados.
Gostei ler o texto do nosso paraibano aqui. E acho importante que divulgue essas preciosidades, de la e de cá, para que conheçamos ou relembremos.
Obrigado pelo teu olhar generosos no "Apetece-me"
Beijinhos e abraços, um restinho de quinta-feira!
Meu querido Mestre Sant'Anna, fico sem palavras perante um comentário tão enriquecedor quanto este!
EliminarLer o que escreve, seja aqui neste meu modesto espaço, seja noutros de maior 'intelecto', é sempre um enorme prazer e uma lição de Literatura ao mais alto nível.
Tudo o que nos diz, escrevendo, me "Apetece", portanto, meu bom Amigo, quem tem que agradecer e muito, sou eu.
Beijinhos e abraços, sempre! :)
Baleia
EliminarGraciliano Ramos
A CACHORRA Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pelo caíra-lhe em vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida.
Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um princípio de hidrofobia e amarrara-lhe no pescoço um rosário de sabugos de milho queimados. Mas Baleia, sempre de mal a pior, roçava-se nas estacas do curral ou metia-se no mato, impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo as orelhas murchas, agitando a cauda pelada e curta, grossa nas bases, cheia de moscas, semelhante a uma cauda de cascavel.
Então Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de pederneira, lixou-a, limpou-a com o saca-trapo e fez tenção de carregá-la bem para a cachorra não sofrer muito.
Sinhá Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assustados, que adivinhavam desgraça e não se cansavam de repetir a mesma pergunta:
- Vão bulir com a Baleia?
Tinham visto o chumbeiro e o polvarinho, os modos de Fabiano afligiam-nos, davam-lhes a suspeita de que Baleia corria perigo.
Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferenciavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo, ameaçava cobrir o chiqueiro das cabras.
Quiseram mexer na taramela e abrir a porta, mas sinhá vitória levou-os para a cama de varas, deitou-os e esforçou-se por tapar-lhes os ouvidos: prendeu a cabeça do mais velho entre as coxas e espalmou as mãos nas orelhas do segundo. Como os pequenos resistissem, aperreou-¬se e tratou de subjugá-los, resmungando com energia.
Ela também tinha o coração pesado, mas resignava-se: naturalmente a decisão de Fabiano era necessária e justa. Pobre da Baleia.
EliminarEscutou, ouviu o rumor do chumbo que se derramava no cano da arma, as pancadas surdas da vareta na bucha. Suspirou. Coitadinha da Baleia.
Os meninos começaram a gritar e a espernear. E como sinhá Vitória tinha relaxado os músculos, deixou escapar o mais taludo e soltou uma praga:
- Capeta excomungado.
Na luta que travou para segurar de novo o filho rebelde, zangou-se de verdade. Safadinho. Atirou um cocorote ao crânio enrolado na coberta vermelha e na saia de ramagens.
Pouco a pouco a cólera diminuiu, e sinhá Vitória, embalando as crianças, enjoou-se da cadela achacada, gargarejou muxoxos e nomes feios. Bicho nojento, babão. Inconveniência deixar cachorro doido solto em casa. Mas compreendia que estava sendo severa demais, achava difícil Baleia endoidecer e lamentava que o marido não houvesse esperado mais um dia para ver se realmente a execução era indispensável.
Nesse momento Fabiano andava no copiar, batendo castanholas com os dedos. Sinhá Vitória encolheu o pescoço e tentou encostar os ombros às orelhas. Como isto era impossível, levantou um pedaço da cabeça.
Fabiano percorreu o alpendre, olhando as baraúna e as porteiras, açulando um cão invisível contra animais invisíveis:
-Ecô! ecô!
Em seguida entrou na sala, atravessou o corredor e chegou à janela baixa da cozinha. Examinou o terreiro, viu Baleia coçando-se a e esfregar as peladuras no pé de turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado da árvore, agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o animal estivesse de frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar às catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos de Baleia, que se pôs latir desesperadamente.
Ouvindo o tiro e os latidos, sinhá Vitória pegou-se à Virgem Maria e os meninos rolaram na caca chorando alto. Fabiano recolheu-se.
EliminarE Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho da esquerda, passou rente aos craveiros e às panelas de losna, meteu-se por um buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao copiar, mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras. Demorou-se aí por um instante, meio desorientada, saiu depois sem destino, aos pulos.
Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. Quis recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve medo da roda.
Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma barroca macia e funda. Gostava de espojar-se ali: cobria-se de poeira, evitava as moscas e os mosquitos, e quando se levantava, tinha as folhas e gravetos colados às feridas, era um bicho diferente dos outros. Caiu antes de alcançar essa cova arredada. Tentou erguer-se, endireitou a cabeça e estirou as pernas dianteira, mas o resto do corpo ficou deitado de banda. Nesta posição torcida, mexeu-¬se a custo, ralando as patas, cravando as unhas no chão, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal esmoreceu e aquietou-se junto às pedras onde os meninos jogavam cobras mortas. Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano. Realmente não latina: uivava baixinho, e os uivos iam diminuindo, tomavam-se quase imperceptíveis.
Como o sol a encandeasse, conseguiu adiantar-se umas polegadas e escondeu-se numa nesga de sombra que ladeava a pedra.
Olhou-se de novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava e aproximava-se.
Sentiu o cheiro bom dos preás que desciam do morro, mas o cheiro vinha fraco e havia nele partículas de outros viventes. Parecia que o morro se tinha distanciado muito. Arregaçou o focinho, aspirou o ar lentamente, com vontade de subir a ladeira e perseguir os preás, que pulavam e corriam em liberdade.
Começou a arquejar penosamente, fingindo ladrar. Passou a língua pelos beiços torrados e não experimentou nenhum prazer. O olfato cada vez mais se embotava: certamente os preás tinha fugido.
Esqueceu-os e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano, que lhe apareceu diante dos olhos meio vidrados, com um objeto esquisito na mão. Não conhecia o objeto, mas pôs-se a tremer, convencida de que ele encerrava surpresas desagradáveis. Fez um esforço para desviar-se daquilo e encolher o rabo. Cerrou as pálpebras pesadas e julgou que o rabo estava encolhido. Não poderia morder Fabiano: tinha nascido perto dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão, ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas.
EliminarO objeto desconhecido continuava a ameaçá-la. Conteve a respiração, cobriu os dentes, espiou o inimigo por baixo das pestanas caídas. Ficou assim algum tempo, depois sossegou. Fabiano e a coisa perigosa tinham-se sumido.
Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza o sol desaparecera. Os chocalhos das cabras tilintaram para os lados do rio, o fartum do chiqueiro espalhou-se pela vizinhança.
Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A obrigação dela era levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir os meninos. Estranhou a ausência deles.
Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não atribuía a esse desastre a importância em que se achava nem percebia que estava livre de responsabilidades.
Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar cabras: àquela hora cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas. Felizmente os meninos dormiam na esteira, por baixo do caritó onde sinhá Vitória guardava o cachimbo.
Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio completo, nenhum sinal de vida nos arredores. O galo velho não cantava no poleiro, nem Fabiano roncava na cama de varas. Estes sons não interessavam Baleia, mas quando o galo batia as asas e Fabiano se virava, emanações familiares revelavam-lhe a presença deles. Agora parecia que a fazenda se tinha despovoado.
Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a língua pendente e insensível. Não sabia o que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que recebera no quarto e a viagem difícil no barreiro ao fim do pátio desvaneciam-se no seu espírito.
Provavelmente estava na cozinha, entre as pedras que serviam de trempe. Antes de se deitar, sinhá Vitória retirava dali os carvões e a cinza, varria com um molho de vassourinha o chão queimado, e aquilo ficava um bom lugar para cachorro descansar. O calor afugentava as pulgas, a terra se amaciava. E, findos os cochilos, numerosos preás corriam e saltavam, um formigueiro de preás invadia a cozinha.
A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do outro peito para trás era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne meio comida pela doença.
Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente sinhá Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo.
Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.
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Fonte: RAMOS, Graciliano. Vidas secas, 82ªed. Rio de Janeiro: Record. 2001. p. 85-91.
EliminarNão resisti e trouxe um capítulo do romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Observe é 82a. edição. Inicialmente, escrito como um conto, depois enfeixado no romance. Aliás, o romance seriam contos enfeixados em um romance, mas isto é outra história. O título do livro (Vidas Secas) e a descrição da Cachorra Baleia são capazes de nos dá a dimensão do drama dos retirantes.
O mestre Graça escreveu 12 livros (incluindo um infantil). Um dos quais é Memória do Cárcere. Ele esteve preso acusado de comunista...
Nasceu numa cidade chamada Palmeira dos Índios, em Alagoas e outras coisinhas.
Aqui já é Carnaval, acorda pra ver, cidade. Muitos foliões estão "pagando em suor a felicidade" nos circuitos do Carnaval.
Beijinhos para o final de semana!
EliminarMeu querido José Carlos.
EliminarEstou boquiaberta!!
Quando, de manhã, vim até ao meu blog responder aos comentários que os amigos/as tiveram a amabilidade de me deixar, uma vez que ontem à noite, por motivos de força maior me não foi possível fazer, agendei a publicação seguinte para as 12h00 e fui à minha vida. Agora, tive a maior e mais agradável supresa que me poderia ter feito.
Prometo que, mais tarde, irei ler tudo atentamente, mas pelo que já pude ler, ainda que um pouco na diagonal, tenho algo para ler e guardar religiosamente. Talvez para mais tarde recordar...como algo que me foi oferecido com muito carinho por alguém especial.
Beijinhos gratos e de rosto lavado em lágrimas.
Tive de ler com atenção... não fosse perder algum sentido menos óbvio... : )
ResponderEliminarLeste tão devagarinho que que deste ensejo ao Blogger de te apanhar e levar para o depósito do Spam, Catarina...😊
EliminarBeijo. 😘
Era isso que te ia dizer hoje porque ontem não tinha visto o meu comentário. : )
Eliminarbjos
Como me considero também uma " do outro lado do Atlântico ", agradeço-te muito a homenagem que aqui fazes ao povo nordestino, povo tão sofredor em muitos aspectos. Hoje, as coisas estão melhores, mas ainda sofrem muito devido aos grandes períodos de seca que poderiam ser sanados se os governos se lembrassem desse povo sofrido. O José Carlos fala no livro Torto Arado, de Itamar junior que ganhou o prémio Leya, creio que em 2018, livro que já li e que me agradou muito. Obrigada, Janita! Um beijinho e que a vida te abençoe com saúde e dias tranquilos. Beijinhos
ResponderEliminarEmilia
Minha querida Emília, isso do «outro lado do Atlântico», a bem dizer, foi força de expressão pois neste mundo virtual tudo e todos se encontram para lá de um qualquer oceano. :)
EliminarJá eu, para além de Jorge Amado, não li nenhum dos escritores que o José Carlos referiu. Não sei se a falha será minha se das Editoras do nosso burgo.
Minha querida, agradeço imenso essa bênção pois essas dádivas são tudo o que mais preciso neste momento.
Bem-hajas, amiga.
Beijinhos e bom fim de semana.